O Velho Senado
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.II, 1994.
Publicado originalmente
A propósito de algumas litografias de Sisson,
tive há dias uma visão do Senado de 1860. Visões valem o mesmo que a retina em
que se operam. Um político, tornando a ver aquele corpo, acharia nele a mesma alma dos seus correligionários extintos, e um
historiador colheria elementos para a história. Um simples curioso não descobre
mais que o pinturesco do tempo e a expressão das
linhas com aquele tom geral que dão as coisas mortas e enterradas.
Nesse ano entrara eu para a imprensa. Uma noite, como
saíssemos do Teatro Ginásio, Quintino Bocaiúva e eu fomos tomar chá. Bocaiúva
era então uma gentil figura de rapaz, delgado, tez macia, fino bigode e olhos
serenos. Já então tinha os gestos lentos de hoje, e um pouco daquele ar distant que Taine achou
Estas minudências, agradáveis de escrever, sê-lo-ão menos
de ler. É difícil fugir a elas, quando se recordam coisas idas. Assim, dizendo
que no mesmo ano, abertas as câmaras, fui para o Senado, como redator do Diário
do Rio, não posso esquecer que nesse ou no outro ali estiveram comigo,
Bernardo Guimarães, representante do Jornal do Comércio, e Pedro Luís,
por parte do Correio Mercantil, nem as boas horas que vivemos os três.
Posto que Bernardo Guimarães fosse mais velho que nós, partíamos irmãmente o pão da intimidade. Descíamos juntos
aquela Praça da Aclamação, que não era então o parque de hoje, mas um vasto
espaço inculto e vazio como o Campo de S. Cristóvão. Algumas vezes íamos jantar
a um restaurant da Rua dos Latoeiros, hoje
Gonçalves Dias, nome este que se lhe deu por indicação justamente no Diário
do Rio; o poeta morara ali outrora, e foi Múzio,
seu amigo, que pela nossa folha o pediu à Câmara Municipal. Pedro Luís não
tinha só a paixão que pôs nos belos versos à Polônia e no discurso com que,
pouco depois, entrou na Câmara dos Deputados, mas ainda a graça, o sarcasmo, a
observação fina e aquele largo riso em que os grandes olhos se faziam maiores.
Bernardo Guimarães não falava nem ria tanto, incumbia-se de pontuar o diálogo
com um bom dito, um reparo, uma anedota. O Senado não se prestava menos que o
resto do mundo à conversação dos três amigos.
Poucos membros restarão da velha casa. Paranaguá e Sinimbu
carregam o peso dos anos com muita facilidade e graça, o que ainda mais admira
em Sinimbu, que suponho mais idoso. Ouvi falar a este
bastantes vezes; não apaixonava o debate, mas era simples, claro,
interessante, e, fisicamente, não perdia a linha. Esta geração conhece a
firmeza daquele homem político, que mais tarde foi presidente do Conselho e
teve de lutar com oposições grandes. Um incidente dos últimos anos mostrará bem
a natureza dele. Saindo da Câmara dos Deputados para a Secretaria da
Agricultura, com o Visconde de Ouro Preto, colega de
gabinete, eram seguidos por enorme multidão de gente
Para avaliar bem a minha impressão diante daqueles homens
que eu via ali juntos, todos os dias, é preciso não esquecer que não poucos
eram contemporâneos da maioridade, algum da Regência, do Primeiro Reinado e da
Constituinte. Tinham feito ou visto fazer a história dos tempos iniciais do regímen, e eu era um adolescente espantado e curioso.
Achava-lhes uma feição particular, metade militante, metade triunfante, um
pouco de homens, outro pouco de instituição. Paralelamente, iam-me lembrando os apodos e chufas que a paixão política desferira
contra alguns deles, e sentia que as figuras serenas e respeitáveis que ali
estavam agora naquelas cadeiras estreitas não tiveram outrora o respeito dos
outros, nem provavelmente a serenidade própria. E tirava-lhes as cãs e as
rugas, e fazia-os outra vez moços, árdegos e
agitados. Comecei a aprender a parte do presente que há no passado, e
vice-versa. Trazia comigo a oligarquia, o golpe de Estado de
1848, e outras notas da política em oposição ao domínio conservador, e ao
ver os cabos deste partido, risonhos, familiares, gracejando entre si e com os
outros, tomando juntos café e rapé, perguntava a mim mesmo se eram eles que
podiam fazer, desfazer e refazer os elementos e
governar com mão de ferro este país.
Os senadores compareciam regularmente ao trabalho. Era
raro não haver sessão por falta de quorum. Uma particularidade do tempo
é que muitos vinham em carruagem própria, como Zacarias, Monte Alegre,
Abrantes, Caxias e outros, começando pelo mais velho, que era o Marquês de Itanhaém. A idade deste fazia-o menos assíduo, mas ainda
assim era-o mais do que cabia esperar dele. Mal se podia apear do carro, e
subir as escadas; arrastava os pés até à cadeira, que ficava do lado direito da
mesa. Era seco e mirrado, usava cabeleira e trazia óculos fortes. Nas
cerimônias de abertura e encerramento agravava o aspecto com a farda de
senador. Se usasse barba, poderia disfarçar o chupado e engelhado dos tecidos,
a cara rapada acentuava-lhe a decrepitude; mas a cara rapada era o costume de
outra quadra, que ainda existia na maioria do Senado. Uns,
como Nabuco e Zacarias, traziam a barba toda feita; outros deixavam
pequenas suíças, como Abrantes e Paranhos, ou, como Olinda e Eusébio, a barba
em forma de colar; raros usavam bigodes, como Caxias e Montezuma, — um Montezuma de segunda maneira.
A figura de Itanhaém era uma
razão visível contra a vitaliciedade do Senado, mas é também certo
que a vitaliciedade dava àquela casa uma consciência de duração
perpétua, que parecia ler-se no rosto e no trato de seus membros. Tinham um ar
de família, que se dispersava durante a estação calmosa, para ir às águas e
outras diversões, e que se reunia depois, em prazo certo, anos e anos. Alguns
não tornavam mais, e outros novos apareciam; mas também nas famílias se morre e
nasce. Dissentiam sempre, mas é próprio das famílias numerosas brigarem,
fazerem as pazes e tornarem a brigar; parece até que é a melhor prova de estar
dentro da humanidade. Já então se evocavam contra a vitaliciedade do Senado os
princípios liberais, como se fizera antes. Algumas vozes vibrantes cá fora,
calavam-se lá dentro, é certo, mas o gérmen da reforma ia ficando, os programas
o acolhiam, e, como em vários outros casos, os sucessos o fizeram lei.
Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e
constante. Geralmente, as galerias não eram mui freqüentadas, e, para o fim da
hora, poucos espectadores ficavam, alguns dormiam.
Naturalmente, a discussão do voto de graças e outras chamavam mais gente.
Nabuco e algum outro dos principais da casa gozavam do privilégio de atrair
grande auditório, quando se sabia que eles rompiam um debate ou respondiam a um
discurso. Nessas ocasiões, mui excepcionalmente, eram admitidos ouvintes no
próprio salão do Senado, como aliás era comum na
Câmara temporária; como nesta, porém, os espectadores não intervinham com
aplausos nas discussões. A presidência de Abaeté redobrou a disciplina do
regimento, porventura menos apertada no tempo da presidência de Cavalcanti.
Não faltavam oradores. Uma só vez ouvi falar a Eusébio de Queirós, e a impressão que me deixou foi viva; era fluente,
abundante, claro, sem prejuízo do vigor e da energia. Não foi discurso de
ataque, mas de defesa, falou na qualidade de chefe do Partido Conservador, ou papa; Itaboraí, Uruguai, Saião Lobato e outros eram cardeais, e todos formavam
o consistório, segundo a célebre definição de Otaviano no Correio
Mercantil. Não reli o discurso, não teria agora tempo nem oportunidade de
fazê-lo, mas estou que a impressão não haveria diminuído muito, posto lhe falte
o efeito da própria voz do orador, que seduzia. A matéria era sobremodo
ingrata: tratava-se de explicar e defender o acúmulo dos cargos públicos,
acusação feita na imprensa da oposição. Era a tarde da
oligarquia, o crepúsculo do domínio conservador. As eleições de 1860, na
capital, deram o primeiro golpe na situação; se também deram o último, não sei;
os partidos nunca se entenderam bem acerca das causas imediatas da própria
queda ou subida, salvo no ponto de serem alternadamente a violação ou a
restauração da carta constitucional. Quaisquer que fossem, então, a verdade é
que as eleições da capital naquele ano podem ser contadas como uma vitória
liberal. Elas trouxeram à minha imaginação adolescente uma visão rara e
especial do poder das urnas. Não cabe inseri-la aqui; não direi o movimento
geral e o calor sincero dos votantes, incitados pelos artigos da imprensa e
pelos discursos de Teófilo Otôni, nem os lances,
cenas e brados de tais dias. Não me esqueceu a maior parte deles; ainda guardo
a impressão que me deu um obscuro votante que veio ter com Otôni,
perto da matriz do Sacramento. Otôni não o conhecia,
nem sei se o tornou a ver. Ele chegou-se-lhe e
mostrou-lhe um maço de cédulas, que acabava de tirar às escondidas da algibeira
de um agente contrário. O riso que acompanhou esta notícia nunca mais se me
apagou da memória. No meio das mais ardentes reivindicações
deste mundo, alguma vez me despontou ao longe aquela boca sem nome,
acaso verídica e honesta em tudo o mais da vida, que ali viera confessar
candidamente, e sem outro prêmio pessoal, o fino roubo praticado. Não mofes
desta insistência pueril da minha memória; eu a tempo advirto que as mais
claras águas podem levar de enxurro alguma palha podre, — se é que é podre, se é que é mesmo
palha.
Eusébio de Queirós era justamente respeitado dos seus e
dos contrários. Não tinha a figura esbelta de um Paranhos, mas ligava-se-lhe uma história particular e célebre, dessas que
a crônica social e política de outros países escolhe e examina, mas que os
nossos costumes, — aliás demasiado soltos na palestra, — não consentem inserir no escrito.
De resto, pouco valeria repetir agora o que se divulgava então, não podendo pôr
aqui a própria e extremada beleza da pessoa que as ruas e salas desta cidade
viram tantas vezes. Era alta e robusta; não me ficaram outros pormenores.
O Senado contava raras sessões ardentes; muitas, porém,
eram animadas. Zacarias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e
vigor dos golpes. Tinha a palavra cortante, fina e rápida, com uns efeitos de
sons guturais, que a tornavam mais penetrante e irritante. Quando ele se
erguia, era quase certo que faria deitar sangue a alguém. Chegou até hoje a
reputação de debater, como oposicionista, e como ministro e chefe de
gabinete. Tinha audácias, como a da escolha "não acertada", que a
nenhum outro acudiria, creio eu. Politicamente, era
uma natureza seca e sobranceira. Um livro que foi de seu uso, uma História de Clarendon (History of the Rebellion and Civil Wars in England), marcado em partes, a lápis encarnado, tem uma
sublinha nas seguintes palavras (vol. I, pág. 44)
atribuídas ao Conde de Oxford, em resposta ao Duque de Buckingham,
"que não buscava a sua amizade nem temia o seu ódio". É arriscado ver
sentimentos pessoais nas simples notas ou lembranças postas em livros de
estudo, mas aqui parece que o espírito de Zacarias achou o seu parceiro.
Particularmente, ao contrário, e desde que se inclinasse a alguém, convidava
fortemente a amá-lo; era lhano e simples, amigo e confiado. Pessoas que o
freqüentavam, dizem e afirmam que, sob as suas árvores da Rua do Conde ou entre
os seus livros, era um gosto ouvi-lo, e raro haverá esquecido a graça e a
polidez dos seus obséquios. No Senado, sentava-se à esquerda da mesa, ao pé da
janela, abaixo de Nabuco, com quem trocava os seus reparos e reflexões. Nabuco,
outra das principais vozes do Senado, era especialmente orador para os debates
solenes. Não tinha o sarcasmo agudo de Zacarias, nem o
epigrama alegre de Cotegipe. Era então o centro dos conservadores
moderados que, com Olinda e Zacarias, fundaram a liga e os partidos
Progressista e Liberal. Joaquim Nabuco, com a eloqüência de escritor político e
a afeição de filho, dirá toda essa história no livro que está consagrando à
memória de seu ilustre pai. A palavra do velho Nabuco era modelada pelos
oradores da tribuna liberal francesa. A minha impressão é que preparava os seus
discursos, e a maneira por que os proferia realçava-lhes a matéria e a forma sólida
e brilhante. Gostava das imagens literárias: uma dessas, a comparação do poder
moderador à estátua de Glauco, fez então fortuna. O gesto não era vivo, como o
de Zacarias, mas pausado, o busto cheio era tranqüilo, e a voz adquiria uma
sonoridade que habitualmente não tinha.
Mas eis que todas as figuras se atropelam na evocação
comum, as de grande peso, como Uruguai, com as de pequeno ou nenhum peso, como
o Padre Vasconcelos, senador creio que pela Paraíba, um bom homem que ali achei
e morreu pouco depois. Outro, que se podia incluir nesta segunda categoria, era
um de quem só me lembram duas circunstâncias, as longas barbas grisalhas e
sérias, e a cautela e pontualidade com que não votava os artigos de uma lei sem
ter os olhos pregados
Um dia vi ali aparecer um homem alto, suíças e bigodes
brancos e compridos. Era um dos remanescentes da Constituinte, nada menos que Montezuma, que voltava da Europa. Foi-me impossível
reconhecer naquela cara barbada a cara rapada que eu conhecia da litografia Sisson; pessoalmente nunca o vira. Era, muito mais que Olinda, um tipo de velhice robusta. Ao meu espírito de rapaz
afigurava-se que ele trazia ainda os rumores e os gestos da assembléia de 1823.
Era o mesmo homem; mas foi preciso ouvi-lo agora para sentir toda a veemência
dos seus ataques de outrora. Foi preciso ouvir-lhe a ironia de hoje para
entender a ironia daquela retificação que ele pôs ao texto de uma pergunta ao
Ministro do Império, na célebre sessão permanente de
Agora o que eu mais ouvia dizer dele, além do talento,
eram as suas infidelidades, e sobre isto corriam anedotas; mas eu nada tenho
com anedotas políticas. Que se não pudesse fiar muito em seus carinhos
parlamentares, creio. Uma vez, por exemplo, encheu a alma de Sousa Franco de
grandes aleluias. Querendo criticar o Ministro da Fazenda (não me lembra quem
era) começou por afirmar que nunca tivéramos ministros da Fazenda, mas
tão-somente ministros do Tesouro. Encarecia com adjetivos: excelentes, ilustrados,
conspícuos ministros do Tesouro, mas da Fazenda nenhum. "Um houve, Sr. presidente que nos deu alguma coisa do que deve ser um
Ministro da Fazenda; foi o nobre senador pelo Pará". E Sousa Franco sorria
alegre, deleitava-se com a exceção, que devia doer ao seu forte rival em
finanças, Itaboraí; não passou muito tempo que não perdesse o gosto. De outra
vez, Montezuma atacava a Sousa Franco, e este
novamente sorria, mas agora a expressão não era alegre, parecia rir de desdém. Montezuma empina o busto, encara-o irritado, e com a voz e
o gesto intima-lhe que recolha o riso; e passa a demonstrar as suas críticas,
uma por uma, com esta espécie de estribilho: "Recolha o riso o nobre
senador!" Tudo isto aceso e torvo. Sousa Franco quis resistir; mas o riso
recolheu-se por si mesmo. Era então um homem magro e cansado. Gozava ainda
agora a popularidade ganha na Câmara dos Deputados, anos antes, pela campanha
que sustentou, sozinho e parece que enfermo, contra o
Partido Conservador.
Contrastando com Sousa Franco, vinha a figura de Paranhos,
alta e forte. Não é preciso dizê-lo a uma geração que o conheceu e admirou, ainda belo e robusto na velhice. Nem é preciso
lembrar que era uma das primeiras vozes do Senado. Eu trazia de cor as palavras
que alguém me confiou haver dito, quando ele era simples estudante da Escola
Central: "Sr. Paranhos, você ainda há de ser ministro". O estudante
respondia modestamente, sorrindo; mas o profeta dos seus destinos tinha
apanhado bem o valor e a direção da alma do moço.
Muitas recordações me vieram do Paranhos de então,
discursos de ataque, discursos de defesa, mas, uma basta, a justificação do
convênio de 20 de fevereiro. A notícia deste ato entrou no Rio de Janeiro, como
as outras desse tempo, em que não havia telégrafo. Os sucessos do exterior
chegavam-nos às braçadas, por atacado, e uma batalha, uma conspiração, um ato
diplomático eram conhecidos com todos os seus pormenores. Por um paquete do Sul
soubemos do convênio da vila da União. O pacto foi mal recebido, fez-se uma
manifestação de rua, e um grupo de populares, com três ou quatro chefes à
frente, foi pedir ao governo a demissão do plenipotenciário. Paranhos foi
demitido, e, aberta a sessão parlamentar, cuidou de produzir a sua defesa.
Tornei a ver aquele dia, e ainda agora me parece vê-lo.
Galerias e tribunas estavam cheias de gente; ao salão do Senado foram admitidos
muitos homens políticos ou simplesmente curiosos. Era uma hora da tarde quando
o presidente deu a palavra ao senador por Mato Grosso; começava a discussão do
voto de graças. Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os
dedos, erguia-os para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da
camisa, e a voz ia saindo meditada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de
produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que
ditas: "Não a vaidade. Sr. presidente..."
Daí a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou
como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando ele acabou; estava como
no princípio, nenhum sinal de fadiga nele nem no auditório, que o aplaudiu. Foi
uma das mais fundas impressões que me deixou a eloqüência parlamentar. A
agitação passara com os sucessos, a defesa estava feita. Anos depois do ataque,
esta mesma cidade aclamava o autor da lei de 28 de setembro de 1871, como uma
glória nacional; e ainda depois, quando ele tornou da Europa, foi recebê-lo e
conduzi-lo até a casa. Ao clarão de um belo sol, rubro de comoção, levado pelo
entusiasmo público, Paranhos seguia as mesmas ruas que, anos antes, voltando do
Sul, pisara sozinho e condenado.
A visão do Senado foi-se-me assim alterando nos gestos e nas pessoas, como nos dias, e sempre remota e
velha: era o Senado daqueles três anos. Outras figuras vieram vindo. Além dos
cardeais, os Muritibas, os Sousa e Melos, vinham os de menor graduação política, o risonho
Pena, zeloso e miúdo em seus discursos, o Jobim, que falava algumas vezes, o
Ribeiro, do Rio Grande do Sul, que não falava nunca, — não me lembra, ao menos. Este,
filósofo e filólogo, tinha junto a si, no tapete,
encostado no pé da cadeira, um exemplar do dicionário de Morais. Era comum
vê-lo consultar um e outro tomo, no correr de um debate, quando ouvia algum
vocábulo, que lhe parecia de incerta origem ou duvidosa aceitação. Em contraste
com a abstenção dele, eis aqui outro, Silveira da Mota, assíduo na tribuna,
oposicionista por temperamento, e este outro, D. Manuel de Assis Mascarenhas,
bom exemplar da geração que acabava. Era um homenzinho seco e baixo, cara lisa, cabelo raro e branco, tenaz, um tanto impertinente, creio que desligado de partidos. Da sua tenacidade dará idéia o que lhe vi fazer em
relação a um projeto de subvenção ao teatro lírico, por meio de loterias. Não
era novo; continuava o de anos anteriores. D. Manuel opunha-se por todos os
meios à passagem dele, e fazia extensos discursos. A mesa, para acabar com o
projeto, já o incluía entre os primeiros na ordem do dia, mas nem assim
desanimava o senador. Um dia foi ele colocado antes de nenhum. D. Manuel pediu a
palavra, e francamente declarou que era seu intuito falar toda a sessão;
portanto, aqueles de seus colegas que tivessem algum negócio estranho e fora do
Senado podiam retirar-se; não se discutiria mais nada. E falou até o fim da
hora, consultando a miúdo o relógio para ver o tempo que lhe ia faltando.
Naturalmente não haveria muito que dizer em tão escassa matéria, mas a
resolução do orador e a liberdade do regimento davam-lhe meio de compor o
discurso. Daí nascia uma infinidade de episódios,
reminiscências, argumentos e explicações; por exemplo, não era recente a sua
aversão às loterias, vinha do tempo em que, andando a viajar, foi ter a
Hamburgo; ali ofereceram-lhe com tanta instância um bilhete de loteria, que ele
foi obrigado a comprar, e o bilhete saiu branco. Esta anedota era contada com
todas as minúcias necessárias para ampliá-la. Uma parte do tempo falou sentado, e acabou diante da mesa e três ou quatro colegas.
Mas, imitando assim Catão, que também falou um dia
inteiro para impedir uma petição de César, foi menos feliz que o seu colega
romano. César retirou a petição, e aqui as loterias passaram, não me lembra se por fadiga ou omissão de D. Manuel; anuência é que não podia
ser. Tais eram os costumes do tempo.
E após ele vieram outros, e ainda outros, Sapucaí,
Maranguape, Itaúna, e outros mais, até que se
confundiram todos e desapareceu tudo, coisas e pessoas, como sucede às visões.
Pareceu-me vê-los enfiar por um corredor escuro, cuja porta era fechada por um
homem de capa preta, meias de seda preta, calções pretos e sapatos de fivela.
Este era nada menos que o próprio porteiro do Senado, vestido segundo as praxes
do tempo, nos dias de abertura e encerramento da assembléia geral. Quanta coisa
obsoleta! Alguém ainda quis obstar à ação do porteiro, mas tinha o gesto tão
cansado e vagaroso que não alcançou nada; aquele deu volta à chave, envolveu-se
na capa, saiu por uma das janelas e esvaiu-se no ar, a caminho de algum
cemitério, provavelmente. Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu
catá-lo, mas não vale; todos os cemitérios se parecem.